sexta-feira, 28 de janeiro de 2011


Perfume Exótico

Quando eu a dormitar, num íntimo abandono, 
Respiro o doce olor do teu colo abrasante, 
Vejo desenrolar paisagem deslumbrante 
Na auréola de luz d'um triste sol de outono; 

Um éden terreal, uma indolente ilha 
Com plantas tropicais e frutos saborosos; 
Onde há homens gentis, fortes e vigorosos, 
E mulher's cujo olhar honesto maravilha. 

Conduz-me o teu perfume às paragens mais belas; 
Vejo um porto ideal cheio de caravelas 
Vindas de percorrer países estrangeiros; 

E o perfume subtil do verde tamarindo, 
Que circula no ar e que eu vou exaurindo, 
Vem juntar-se em minh'alma à voz dos marinheiros. 

Charles Baudelaire

sábado, 22 de janeiro de 2011


Na Ilha Por Vezes Habitada

Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra em nós uma grande serenidade,
e dizem-se as palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres,
com a paz e o sorriso de quem se reconhece
e viajou à roda do mundo infatigável,
porque mordeu a alma até aos ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.

José Saramago

terça-feira, 18 de janeiro de 2011


Dá-me as Tuas Mãos

As mãos foram feitas 
para trazer o futuro, 
encurtar a tristeza, encher 
o que fica das mãos 
de ontem - intervalos 
(duros, fiéis) das palavras, 
vocação urgente 
da ternura, pensamento 
entreaberto até 
aos dedos longos 
pelas coisas fora 
pelos anos dentro. 

Vítor Matos e Sá

domingo, 16 de janeiro de 2011


Amor é um Fogo que Arde sem se Ver

Amor é um fogo que arde sem se ver; 
É ferida que dói, e não se sente; 
É um contentamento descontente; 
É dor que desatina sem doer. 

É um não querer mais que bem querer; 
É um andar solitário entre a gente; 
É nunca contentar-se e contente; 
É um cuidar que ganha em se perder; 

É querer estar preso por vontade; 
É servir a quem vence, o vencedor; 
É ter com quem nos mata, lealdade. 

Mas como causar pode seu favor 
Nos corações humanos amizade, 
Se tão contrário a si é o mesmo Amor? 

Luís Vaz de Camões

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011


Delírio

No parque morno, um perfumista oculto
ordenha heliotrópios…
Deixa aberta a janela…

Minhas mãos sabem de cor o teu corpo,
e a alcova é morna…
Apaguemos a luz…

Não sentes na tua boca
um gosto de papoulas?…

Passa o lenço de seda de tuas mãos
sobre minha fronte,
e não me digas nada:
a febre está, baixinho, ao meu ouvido,
falando de ti….

Guimarães Rosa

domingo, 2 de janeiro de 2011


Romantismo

Seremos ainda românticos
e entraremos na densa mata,
em busca de flores de prata,
de aéreos, invisíveis cânticos.

Nas pedras, à sombra, sentados,
respiraremos a frescura
dos verdes reinos encantados
das lianas e da fonte pura.

E tão românticos seremos,
de tão magoado romantismo,
que as folhas dos galhos supremos
que se desprenderem do abismo

pousarão na nossa memória
- secas borboletas caídas -
e choraremos sua história,
resumo de todas as vidas.

 Cecília Meireles