terça-feira, 26 de outubro de 2010


Que Importa?...

Eu era a desdenhosa, a indiferente. 
Nunca sentira em mim o coração 
Bater em violências de paixão 
Como bate no peito à outra gente. 

Agora, olhas-me tu altivamente, 
Sem sombra de Desejo ou de emoção, 
Enquanto a asa loira da ilusão 
Dentro em mim se desdobra a um sol nascente. 

Minh'alma, a pedra, transformou-se em fonte; 
Como nascida em carinhoso monte 
Toda ela é riso, e é frescura, e graça! 

Nela refresca a boca um só instante... 
Que importa?... Se o cansado viandante 
Bebe em todas as fontes... quando passa?... 

Florbela Espanca

domingo, 24 de outubro de 2010


Tenho Medo de Perder a Maravilha

Tenho medo de perder a maravilha 
de teus olhos de estátua e aquele acento 
que de noite me imprime em plena face 
de teu alento a solitária rosa. 

Tenho pena de ser nesta ribeira 
tronco sem ramos; e o que mais eu sinto 
é não ter a flor, polpa, ou argila 
para o gusano do meu sofrimento. 

Se és o tesouro meu que oculto tenho 
se és minha cruz e minha dor molhada, 
se de teu senhorio sou o cão, 

não me deixes perder o que ganhei 
e as águas decora de teu rio 
com as folhas do meu outono esquivo. 

Federico García Lorca

sexta-feira, 1 de outubro de 2010


Janela do Sonho

Abri as janelas 
que havia dentro de ti 
e entrei abandonado 
nos teus braços generosos. 

Senti dentro de mim 
o tempo a criar silêncio 
para te beber altiva e plena. 

Mil vezes 
repeti teu nome, 
mil vezes, 
de forma aveludada 
e era a chave 
que se expunha 
e fecundava dentro de mim. 

Já não se sonha, 
deixei de sonhar, 
o sonho é poeira dos tempos 
é a voz da extensão 
é a voz da pureza 
que dardejava na nossa doçura. 

Quando abri as tuas janelas 
e despi teus braços 
perdi a vaidade 
e a pressa, 
amei a partida 
e em silêncio abri, 
(sem saber que abria) 
uma noite húmida 
em combustão secreta 
desmaiado no teu ombro 
de afrodite. 

Carlos Melo Santos